O Outro é apontado o tempo todo pela mídia para explicar os fatos do cotidiano. A imprensa quase sempre tenta (e consegue) encontrar um culpado na história. Pelo menos foi o que mostraram o sociólogo e professor da Universidade da Califórnia do Sul, Barry Glassner – em seu livro Cultura do Medo – e o professor e jornalista Cláudio Julio Tognolli, em suas aulas de ‘Jornalismo e Alteridade’, na Universidade de São Paulo (USP).
Na obra, Glassner conta como o falso medo, baseado em estimativas irrealistas, se transforma em fonte de sofrimento e pode determinar políticas públicas equivocadas. Segundo o sociólogo, freqüentemente a sociedade tem temores incentivados pela imprensa, que instaura uma onda de pânico com estatísticas parciais e apresentadas fora de contexto. O livro serviu de inspiração para o documentário de Michael Moore, Tiros em Columbine, que ganhou um Oscar.
Glassner mostra que na década de 1990 o número de homicídios, de crimes violentos e de usuários de drogas caiu nos Estados Unidos. Mesmo assim, a imprensa americana trabalhou no sentido inverso. Para tanto, usou casos isolados para atemorizar, intencionalmente ou não, a população. Ele exemplifica que a doença cardíaca, principal causa de morte nos Estados Unidos, recebeu praticamente a mesma cobertura da mídia que a classificada em 11º lugar no ranking – o homicídio.
De acordo com o livro, entre 1990 e 1998, enquanto o índice de homicídios no país caiu 20%, o número de histórias sobre o assunto nos noticiários aumentou 600%. O problema maior, segundo o sociólogo, é que os produtores de programas normalmente deixam que relatos emotivos passem por cima de informações objetivas. É comum que apresentadores de TV nos Estados Unidos, por exemplo, exaltem casos isolados de violência e minimizem os efeitos de dados concretos.
No Brasil, o cenário não é diferente. Há até quem diga o seguinte: mesmo que haja um só caso, ele precisa ser abordado pela imprensa. Até faz sentido. O que não faz sentido é transformá-lo em espetáculo.
Significados e significantes
Barry Glassner encontra numa frase de Alfred Hitchock – ‘Não existe terror no estrondo, apenas na antecipação dele’ – uma explicação para os pseudo-perigos descritos como grandes perigos pela imprensa. Para o sociólogo, em geral os jornalistas tendem a transformar incidentes comuns em novos e grandes vilões.
Ele dedica um capítulo a casos de fúrias no trânsito, superestimados pela imprensa na década de 1990 e com direito até mesmo a exploração de personagens e entrevistas com pseudo-especialistas sobre o assunto. No final da década, embora uma pesquisa tenha indicado que três em cada cinco americanos corriam risco de se envolverem em acidentes relacionados a problemas de álcool, estudos mostraram que as pessoas estavam mais preocupadas com a fúria no trânsito do que com motoristas embriagados.
A forma como a criminalidade é tratada no noticiário também é apontada pelo autor de Cultura do Medo como exagerada. De acordo com ele, certos lugares que jornalistas dizem estarem dominados pelo crime são seguros na verdade. Glassner conclui a obra afirmando que são desperdiçados, todos os anos, bilhões de dólares em perigos basicamente míticos. Para o sociólogo, é possível redirecionar investimentos para combater perigos realmente sérios que ameaçam a sociedade.
O livro deixa claro que os fatos se tornam ‘cadeias de significantes sem significados’ – expressão usada pelo psicanalista Jacques Lacan (1901-1981). E a imprensa, em algumas situações, despeja apenas significantes nos noticiários e programas de TV. Para tanto, usa personagens nas reportagens que embasam suas afirmações sem dar oportunidade aos leitores, telespectadores, internautas e ouvintes a uma reflexão séria sobre os significados dos fatos. Prefere dar voz a pseudo-especialistas ou familiares de vítimas que possam contribuir com suas teses do que divulgar dados objetivos que refletem a realidade.
Bem disse Lacan: ‘Não há significados. Há apenas jogo, colocação, efeito’.
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Editora-chefe do Consultor Jurídico (www.consultorjuridico.com.br)